Milhões de brasileiros vivem em condições precárias de moradia, bebendo água não potável, sem tratamento de esgoto, em alguns casos, sem banheiro. Esta é a realidade desigual do acesso ao saneamento no Brasil.

O Brasil vive em um cenário do acesso ao saneamento básico bem fragilizado, mais de 35 milhões de pessoas não têm água potável nem para lavar a mão no meio da pandemia, mais de 100 milhões não têm esgotamento sanitário. A maioria destas pessoas está nas áreas pobres, nas áreas informais, nas favelas, nas áreas rurais. 

A aprovação do novo Marco Regulatório do Saneamento quer igualar, “universalizar o saneamento” no país até 2033, considerando que metas e privatizações são as soluções para o enfrentamento desta difícil situação. Nesta nova lei, 13  milhões de brasileiros, que vivem em “assentamentos subnormais”, ou seja,  em condições precárias de moradia, ainda permanecerão sem ter o acesso ao básico do saneamento. Então fica a grande pergunta: universalizar para quem? 

Infelizmente para eles, a história não muda com o novo Marco. O acesso ao saneamento não chega por falta de regularização fundiária e políticas públicas e não por falta de empresas para realizar o serviço. Em um estudo sobre saneamento em áreas irregulares nas grandes cidades brasileiras, realizado em 2016 pelo Instituto Trata Brasil, 87% (de 52 municípios pesquisados) relataram como principal entrave, as dificuldades ou a ausência de regularização fundiária destas áreas. 

Na Comunidade do Vietnã, zona Sul de São Paulo, na década de 80, cerca de 50 famílias se estabeleceram próximo ao córrego Águas Espraiadas, entre elas, João das Virgens, líder comunitário e presidente da Associação Conquistando o Espaço. Quarenta anos se passaram e a luta que João pensou que venceria, na década de 80, ainda se arrasta e só cresce. Hoje são  mais de 8 mil famílias que vivem no entorno do córrego. 

Comunidade Vietnã, Jabaquara, São Paulo/SP – (Distrito Jabaquara Alerta)

“Quando chegamos em 1984, pegávamos água com balde na casa de pessoas, ficamos dois anos assim. Depois conseguimos água emprestada, mas a mangueira era fraca de dia e só tínhamos água de madrugada” relembra João. A solução surgiu quase uma década depois, no final dos anos 80. Em uma busca coletiva, João e a comunidade, sensibilizaram a Prefeitura de SP e iniciaram um diálogo com a Sabesp. Foi só então  que  encontraram uma solução para terem a água tratada. 

Analisando a situação da entrada de operações de saneamento nas periferias, o Instituto Trata Brasil acredita que as soluções dependerão de arranjos institucionais. “A meta de atender 99% das pessoas com água e 90% com coleta e tratamento de esgoto fatalmente fará com que nós tenhamos que encontrar algum tipo de arranjo institucional, uma maior sensibilidade por parte das autoridades para que essas pessoas todas sejam atendidas”,  explica Edison Carlos, presidente – executivo do Instituto, que atua com saneamento básico e proteção dos recursos hídricos.

http://www.tratabrasil.org.br/estudos-completo/itb/areas-irregulares.

A situação de disponibilidade de água potável foi resolvida em 4 anos de mobilização na comunidade Vietnã. Porém, a questão do esgoto, 40 anos depois,  continua sem nenhuma solução. Os dejetos continuam sendo despejados diretamente no córrego que fica próximo às casas, provocando um alto nível de contaminação na água e nas pessoas.

João participa do Fórum de Lideranças do Jabaquara que existe desde 2009. Neste espaço, ele leva as demandas de sua comunidade sobre a situação de moradia. “Não existe política pública para moradia. Aqui na comunidade, 90% das casas poderiam ser regularizadas. Só as que estão na área de risco que não podem, porém  não são muitas. Isso é o que queremos, regularizar casas fora da área de risco”. 

João explica que das 8.500 famílias que precisam ser regularizadas,  apenas 1 mil foram para conjuntos habitacionais. Ele conta que existe um recurso para construção de moradias populares e habitação de interesse social que vem do CEPAC – Certificado de Potencial Adicional Construtivo. Este certificado com valor econômico e 25% do valor repassado precisa ser usado em intervenções urbanas de moradias e habitações de interesse social.

“O Cepac não é suficiente para resolver a situação. Atualmente,  está sem dinheiro nenhum. Queremos outra forma de conseguir recursos para as moradias” declara. Neste ano ele está articulando o Colegiado, onde pretende reunir além de lideranças e Prefeitura, o Ministério Público.“O objetivo do colegiado é política habitacional para regularização fundiária, diferente do Fórum de Lideranças, que envolvem outros assuntos”, afirma o líder comunitário.

Para Francisca Adalgisa da Silva, diretora presidente, da APU – Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, que participou dos diálogos que envolveram a construção do novo Marco do Saneamento, a universalização do saneamento não é possível  pelo Marco. A demanda por saneamento no Brasil está nos municípios mais pobres, com baixa capacidade de pagamento, na zona rural ou em assentamento precários localizados em grandes cidades. Cerca de 68 milhões de pessoas. “Precisamos de políticas de investimentos atrelada à indicadores de cobertura e qualidade, redução de perdas e novas tecnologias, sem perder de vista as características regionais”, alerta Francisca. 

“Cerca de 68 milhões de pessoas moram em municípios isolados e estão sem garantia de universalização com a nova lei”.

A preocupação é que municípios pequenos continuem sem investimento em água e esgoto, já que em muitos casos será preciso  construir barragens, açudes, adutoras de água bruta para atender vilas e cidades pobres distantes dos grandes centros urbanos, propostas que vão além da obras de saneamento convencional, centralizado. E para as comunidades com situação de moradia irregular, não é obrigado o atendimento do serviço de saneamento, pelo fato da moradia não estar regularizada.

“O Brasil necessita com urgência de uma política pública para o setor de saneamento de forma integrada com outros setores. É impossível pensar em universalização sem pensar em política de habitação, sem discutir as questões fundiárias dos grandes centros urbanos e das áreas rurais” finaliza Francisca.

Além destas comunidades fragilizadas na área urbana, temos assentamentos pequenos, rurais e isolados que precisam de políticas públicas eficientes.

A universalização não pode ser restringida apenas à oferta do serviço,  mas sim à novas formas de pensar tecnologias que tragam características regionais, dando acesso à água potável e tratamento de esgoto para estes milhões de brasileiros.

Propostas de saneamento descentralizado, com sistemas autônomos, construídos com a comunidade, e gerenciados próximos aos locais, com serviços de captação de água, coleta e tratamento de esgoto, sem a necessidade de estar conectado à um sistema convencional, podem ser estratégias de políticas públicas.

No Litoral Norte de São Paulo, por exemplo, projetos que tragam soluções descentralizadas podem contribuir para a situação alarmante da contaminação dos rios e das praias, em uma região considerada das mais elitizadas do Brasil, mas que também apresenta a realidade da desigualdade socioambiental.

No geral, 43% da população de São Sebastião não é atendida pela rede de esgotamento sanitário, o que corresponde a 37.678 pessoas segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).

Na praia de Camburi,  somando moradores e população flutuante, chega-se a  mais de 23 mil pessoas em momentos de “picos” que descartam seus efluentes para sistemas individuais, como fossas sépticas, ou descartam sem tratamento, sem critérios técnicos e sem fiscalização, contribuindo para a contaminação do Rio e da praia de Camburi e de toda a bacia do litoral norte.

Estudos demonstram que o modelo padrão para o tratamento de esgoto (fossa e sumidouro) utilizados como alternativa por residências e comércios que não tem o serviço de saneamento, tem a eficácia de funcionamento comprometida, por conta do lençol freático alto da região litorânea. Segundo a norma 13969 da ABNT o ideal é que o fundo do sumidouro tenha  1,5m de distância do lençol freático, o que não ocorre nestas regiões. 

Pensando em alternativas com base no saneamento descentralizado e em soluções ecológicas, o FunBEA, está com um projeto aprovado junto ao Comitê de Bacias Hidrográficas do Litoral Norte para fortalecer na região práticas descentralizadas de tratamento de esgoto. “Aprovamos um projeto junto ao CBH-LN com financiamento pelo FEHIDRO – Fundo Estadual de Recursos Hídricos. Uma importante fonte de recursos utilizada para melhorar a situação das águas da bacia e principalmente das pessoas” declara Semíramis Biasoli, secretaria geral do FunBEA.   

Com o projeto mais de 4 mil pessoas na praia de Camburi,  que residem em 6 comunidades Vila Débora, Lobo Guará, Vila Barreira, Areião e Vila do Piavú,  poderão ser beneficiadas.  Pela proposta do FunBEA serão elaborados os “projetos executivos”, contendo os estudos técnicos de engenharia, diagnósticos sociais e ambientais necessários para a posterior realização das obras. Elaborados a partir de alternativas para cada localidade e em amplo processo de mobilização e participação da comunidade, os projetos deverão identificar os sistemas descentralizados de tratamento de esgoto pautados por soluções ecológicas. 

“Por meio dos projetos executivos, será possível ter um diagnóstico de quais obras serão necessárias nas comunidades para a implantação de soluções ecológicas – individuais e coletivas, que respeitem a geografia do local e que contem com a anuência dos proprietários, contribuindo com a solução de focos críticos de poluição hídrica por esgoto na bacias do Rio Camburi.

A proposta do saneamento descentralizado, nesta primeira etapa do projeto, que será de um ano, permitirá que se realize um Diagnóstico Socioambiental, ferramenta de extrema importância para identificar  casas e usuários das águas nas comunidades. As  ações de mobilização e educação ambiental tem o objetivo de engajar os moradores, para o entendimento e adesão à proposta. A área na qual essas pessoas residem são inseridas nas ZEIS – Zonas de  Especial Interesse Social na Bacia Hidrográfica do Rio Camburi.

A Prefeitura de São Sebastião firmou um termo de cooperação técnica com o FunBEA que viabiliza troca de informações e dados visando contribuir na elaboração dos projetos executivos. Para Daniel Henrique Mudat Fernandes, Secretário Adjunto de Meio Ambiente de São Sebastião, planejar o saneamento de forma descentralizada reduz investimentos, colabora para a qualidade de vida da população e para a qualidade das águas do rio e da praia de  Camburi. 

Segundo ele, outras ações serão realizadas no município. “Futuramente com recursos do Fundo Municipal de Saneamento, criado a partir das leis municipais que regulamentam o contrato com a Sabesp, serão realizadas novas propostas para saneamento nos núcleos urbanos informais”, declara.

O amanhã nas mãos coletivas 

A experiência da gestão comunitária das águas na América Latina como aliada na luta por um saneamento básico universal e de qualidade. 

Colaboração: Fernanda Biasoli, jornalismo universitário

O fazer juntos precisa ser descortinado e apresentado ao mundo como uma possibilidade de gestão eficiente. Em diversas partes do globo, comunidades se articulam e pensam em maneiras de melhorar a qualidade de vida daqueles que fazem parte de seu cotidiano. 

A gestão comunitária das águas, parte da solução para a falta de acesso ao saneamento básico de comunidades rurais e isoladas, é ainda pouco conhecida pela maioria da população e quase nada reconhecida pelo poder público. 

Homens e mulheres fortaleceram suas capacidades de administração dos sistemas comunitários de água, que abastecem 72.300 pessoas – México (Fundação Avina).

Estudos apontam que na América Latina, 219 milhões de pessoas ainda não possuem água tratada em suas casas. São 100 mortes por dia relacionadas à falta de acesso ao saneamento básico – 36 mil por ano. Uma parceria entre o poder público e as gestões comunitárias de água pode se tornar, então, uma grande aliada para a universalização desse serviço essencial.

Telma Rocha é coordenadora do Programa de Acesso à Água desenvolvido pela Fundação Avina e acredita que para essa parceria ocorrer, é preciso antes reconhecer a existência das gestões participativas e em conjunto com as comunidades. Esse modelo precisa entrar na narrativa comum, afinal, elas existem, funcionam e estão sendo espalhadas por diversas partes do globo.

Na América Latina existem vários exemplos de gestões comunitárias bem sucedidas, assim como de parcerias com o poder público que viabilizaram o acesso à água para comunidades isoladas. Segundo o manifesto: ‘’Por um acesso à água sustentável e inclusiva’’ realizado pela Fundação Avina, na Costa Rica, o governo aprovou o  Plano Nacional de Capacitação para as OCSAS (Organizações Comunitárias dos Serviços de Água e Saneamento), que prevê maiores oportunidades de capacitação para tais organizações. O governo do Peru criou um sistema online de monitoramento do saneamento rural, chamado Diagnóstico sobre o Abastecimento de Água e Saneamento no Âmbito Rural (DATASS). O sistema é um facilitador para tomada de decisões relacionadas ao saneamento. Segundo o DATASS, existem cerca de 28 mil organizações comunitárias de águas no Peru. 

No Paraguai, onde 50% da água chega à população por meio das OCSAS, as Comissões Intersetoriais de Água e Saneamento (MIAS – em espanhol: Mesas Intersectoriales de Agua y Saneamiento) foram incluídas no  Plano Nacional de Água Potável e Saneamento. As MIAS são espaços de articulação entre sociedade civil, governos subnacionais e setor privado, onde são definidas as prioridades regionais. Segundo o manifesto da Avina, o governo investiu na melhoria do acesso à água para 26.490 pessoas. E a lista não para por aí, no Equador, foi criado o Dia da Gestão Comunitária da Água. No México, uma capacitação de agentes comunitários, permitiu que 238 homens e mulheres fizessem uma melhor administração dos sistemas de água que abastecem 72.300 pessoas.

Além dos benefícios práticos, a gestão comunitária da água possui efeitos muito mais subjetivos. “É uma apropriação sobre as suas realidades’’, aponta Telma. A partir da gestão, os sentimentos de pertencimento àquele território são fortalecidos, o que faz com que haja uma vontade de cuidar e entender o todo o processo. “A gestão comunitária não precisa ficar limitada ao gerenciamento de sistemas, (…), ela é dos cidadãos e cidadãs, é para formarem grupos e acompanharem’’, finaliza a coordenadora. 

O saneamento básico é um direito essencial facilitador da vida e que abre os caminhos para o desenvolvimento de uma comunidade. No Brasil, ele é garantido pela Constituição, é dever do Estado assegurar esse serviço para todas e todos os brasileiros. No entanto, a realidade é bem diferente e é aí que a gestão comunitária se faz presente.  Nela, as pessoas aprendem a se autogerir para conseguir garantir para si e para os seus, algo que deveria ser assegurado pelo poder público.

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