Desde agosto de 2025, jovens moradores do litoral norte de São Paulo estão participando da formação em Educomunicação e Justiça Climática promovida pelo FunBEA. A formação faz parte da Chamada Pública Juventude, Educom e Justiça Climática e tem como objetivo potencializar suas ideias, presenças, expressões e vozes dentro de seus territórios.
Durante uma das atividades, os jovens foram convidados a escrever textos sobre suas vivências e relações com as suas comunidades. Compartilhamos alguns deles:
Núcleo 1 – Vila Sahy/Juquehy
Thauany Mesquita
Desci de casa para comprar pão.
Olhei, e me intriguei, era um montante de pessoas ao longe, misturadas numa praça. De onde estava eu não pude ver quem era. Via apenas algumas estampas coloridas levantadas ao alto, parecia estar acontecendo um briga, uma reivindicação, ou algo do tipo.
Enquanto descia via pessoas saírem de encruzilhadas e caminharem lá para baixo, crianças, jovens, adultos.
Não havia afobamento, era manhã, mas do caminho que eu traçava parecia haver um véu de luz negra cintilante como a noite.
Eu logo soube que algo de bom acontecera.
Desci e observei os comércios do início da rua fechados.
O que logo me gerou um estranhamento. Era dia de semana e já passava das 8h, um cheiro doce de laranja me convidava a descida.
Foi quando avistei uma irmã evangélica na porta de sua casa. “Rosa, minha amiga, o que é que está acontecendo?” “O pessoal tudo tá reunido lá na praça.” “Hã!!! Verdade… Eu fui chamada para esse encontro tão importante, bom, todas nós fomos. Eu estava descendo para comprar pão, tinha esquecido completamente.” “Entre. Venha que eu te ofereço um café enquanto eu termino de ajeitar as crianças. Assim a gente desce juntas.”
Ao chegar naquela praça alguém falava e palavras como justiça, diálogo e escuta ressoavam no ar.
Fomos descendo, e quando cheguei havia um bando de gente reunida, era o pessoal da comunidade, a maioria moradores, alguns, trajados com a caracterização dos respectivos movimentos que participam, outros, nem sabiam o que era movimento social.
Em uma linda roda, havia uma oferenda à Esú, arriada no centro dela, saudando o senhor dos caminhos e da comunicação. Ao entorno, lideranças, crianças, senhoras, pessoas trabalhadoras, comerciantes, adolescentes, e mais todo tipo de gente que ali estava. Cada qual com sua bandeira e objetivos comuns, cada qual percorrendo seu caminho que dava de encontro a mesma encruzilhada. No ebó, oferendamos palavras de união, de respeito às diversidades, em prol de um bem comum, com um olhar atento às interseccionalidades que atravessam as minorias políticas, aos marginalizados socialmente, e aos esquecidos pelo serviço público.
Pude mirar as crianças brincando, os cachorros correndo, os pássaros voando e a gente se olhando.
Entrei na roda para fazer uma fala e o círculo foi se fechando, fechando, fechando, e as pessoas começaram a voar para o alto, não por querer, mas sendo abduzidas, e todo se levantou junto, os animais, as árvores, os brotos, e a própria terra. Iam me fechando, fechando fechando… eu gritava mas no apavoro da ilusão a minha voz já não mais era ouvida.
Acordei.
Desci para comprar o meu pão e tudo estava do jeito de sempre. Os movimentos sociais brigados entre si, uma luta por egos, não uma luta comunitária, um ardor de quem faz mais, quem faz menos, quem contribui de mais, quem contribui de menos, quem é validado, quem é desacolhido, os que podem pisar aqui, os que já não mais podem… Muito desalento, muita desarticulação, muitos a união nem querendo, e em volta, vejo muito sofrimento. E o meu chamado é ao povo negro: 500 anos da invasão, 500 anos de tráfico e escravidão. E ainda lutamos por terra. Mas lhes digo, venha, me dê sua mão. Seguiremos.

Núcleo 2 – Boiçucanga/ Cambury
Gabriel Luiz
Nasci e cresci entre o mar e a mata, com o som das ondas embalando meus dias e a força da floresta guardando meus segredos. Ser caiçara é carregar no corpo e na alma essa mistura de resistência e simplicidade, é viver no compasso da natureza e aprender que tudo tem seu tempo: a lua que guia a pesca, o vento que anuncia a mudança, o silêncio que ensina.
Mas também carrego em mim outra travessia. Sou uma pessoa LGBTQPNIA+ e por muito tempo, senti que minha existência destoava da maré da minha comunidade. O medo de não ser aceito, de perder os laços, de ver olhares desconfiados, me acompanhava como sombra. Ainda assim, o mar sempre me lembrava: não há onda igual à outra, e mesmo assim todas pertencem ao oceano.
Hoje, entendo que minha identidade não me separa da minha gente, mas me aproxima ainda mais dela. Trago no peito o orgulho de ser quem sou e de lutar para que nossas comunidades caiçaras sejam lugares de acolhimento, onde cada pessoa possa florescer sem precisar esconder sua cor, sua fé, sua voz ou seu amor.
Minha luta não é só minha. É pela juventude que sonha em ficar na comunidade sem ter que se calar, é pelas pessoas que vieram antes de mim e abriram caminho, é pela memória dos nossos ancestrais que também sonhavam com liberdade.
Eu e minha comunidade somos parte de um mesmo corpo, feito de maré, de raiz e de diversidade. Eu existo, resisto e insisto em ser quem sou. E, ao afirmar isso, ajudo a transformar o lugar onde vivo em terra fértil para que outras pessoas também possam existir plenamente
A comunidade da Tropicanga, em Boiçucanga, é um lugar de gente trabalhadora e de coração aberto, mas também marcado por contradições. Embora muitos moradores sejam pessoas boas, ainda existe o peso do preconceito, que faz com que quem é diferente, como eu — uma pessoa LGBT — seja visto como anormal. Viver ali é uma luta constante por respeito, dignidade e pertencimento.
Além disso, a realidade da Tropicanga também reflete o descaso do poder público: a prefeitura pouco escuta os moradores, ignora demandas básicas e deixa a comunidade sem a devida estrutura e voz. É nesse cenário de invisibilidade que se somam duas batalhas — a de morar em um lugar esquecido pelas autoridades e a de afirmar minha existência como LGBT em meio ao preconceito. Ainda assim, sigo resistindo, acreditando que minha presença e a força coletiva da comunidade podem transformar esse espaço em um lugar de mais justiça, reconhecimento e inclusão.

Núcleo 3 – Itatinga/Centro
Matheus Vinicius de Souza
O litoral me dilata: o tempo aqui se dissolve como sal na água, mas a cobrança do mundo pesa como concreto nos ombros. Sou feito de ossos de cimento e coração de maresia. Sou litoral, mas não tenho toda essa moral.
Ser artista aqui não é fuga — é permanência. Permanência é o corpo que ocupa, é a voz que semeia. Sigo tentando escrever meu nome na areia sem que a onda apague.
O poste vira tela, a viela vira palco. O tambor do sítio é abrigo e também trincheira. Enquanto a Nova Tamoios corta a cidade como navalha, a especulação cresce como uma praga sobre o mangue.
Sou bicho selvagem: corpo que também é do mato, corpo que também ocupa capitais. É estranho para você ver um jovem periférico na capital com o bolso cheio de capital? As comparações pesam mais que os sacos de cimento que atravessam a cidade em horário comercial.
Entre o cais e a quebrada, descubro que meu território não está no mapa, mas no funk que explode da viela, no maracatu que pulsa no sítio, na conversa de ventos na praça. Minha voz ecoa das matas até o brindar das taças importadas nos centros da cidade.
Caraguatatuba se vende como destino turístico, mas aqui a arte não é vitrine, é sobrevivência. É ocupar o muro descascado, é furar o silêncio, é resistir contra o mar que querem privatizar.
Tenho 27 anos. Sou onda que quebra e volta. Sou fronteira que se move. Sou cais rachado e viela iluminada por lampejos. Não peço licença. Ocupo.
Porque existir na quebrada é ser mar contra o muro. As ondas repetem: cria, cria, cria.
Mas eu me pergunto: criar pra quem? Se querem que sejamos cartão-postal, uma paisagem exótica ou folclore de vitrine?
Não sou fuga, sou fissura. Sou litoral e quebrada, lama e arranha-céu.
Quando o concreto pesa, viro maré; quando a onda tenta apagar, escrevo de novo.
Minha arte não pede permissão: invade, atravessa, incomoda.
Sou a prova de que o corpo é território e a voz é semente. E se querem silêncio, ofereço tempestade — porque existir aqui é erguer-se como farol em noite sem lua, é ser grito que nenhum muro consegue conter.
