Comunidades caiçaras são fundamentais para a manutenção e conservação das águas, da biodiversidade e das práticas culturais tradicionais do bioma
Para além de abrigar dezessete estados, milhões de brasileiros e outras milhares de espécies de fauna e flora, o bioma da Mata Atlântica também carrega em si uma grande contradição. Ao mesmo tempo em que é uma das áreas mais ricas em biodiversidade de todo o planeta, é também uma das mais ameaçadas e integra a lista dos 36 hotspots de biodiversidade do mundo. O que originalmente era composto por mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados, hoje assiste ao pouco que lhe resta ser continuamente explorado e ameaçado. Felizmente, também habitam a Mata Atlântica pessoas que existem na contramão de um modelo de desenvolvimento predatório e sua presença é essencial para a preservação e regeneração de um dos locais mais biodiversos do planeta Terra.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA), o Brasil abriga pelo menos 28 Povos e Comunidades Tradicionais, dentre andirobeiros, extrativistas, benzedeiros, caboclos, catingueiros, quilombolas, cipozeiros e muitos outros. Também integram essa lista as comunidades caiçaras, grupos de agricultores e pescadores que ocupam áreas costeiras entre o norte do Paraná e o sul do Rio de Janeiro. Oriundos da miscigenação entre os povos indígenas, os colonizadores portugueses e a população negra, a comunidade caiçara mantém vivas tradições ancestrais que revelam outras maneiras de se relacionar com a natureza e com outros seres vivos. Seus modos de vida preservam e regeneram o bioma da Mata Atlântica por meio de práticas sustentáveis de agricultura, defesa de territórios tradicionais e de recursos naturais, produção e plantio de mudas nativas e modelos de pesca sustentável.
“Já plantei entre 200 e 700 mudas só de mangue. Contando com mudas de jundu, foram mais de mil. Só aqui no quintal de casa tem umas duas mil mudas”, conta Humberto Messias, caiçara de São Sebastião. Junto ao Movimento Baía do Araçá, Humberto vem restaurando um dos últimos remanescentes de manguezais de todo o litoral norte de São Paulo, o Mangue do Araçá. A região sofre com impactos como descarga de esgoto doméstico, descarte de resíduos e processos de aterramento desde a construção do Porto de São Sebastião em 1936. Foi nesse contexto que o pescador, que viveu a vida inteira no território, desenvolveu um método próprio de produção e plantio de mudas nativas do Mangue do Araçá. Os conhecimentos que ele acumulou ao longo de toda a vida na região, foram essenciais para que pudesse criar mudas resistentes a um ambiente que convive diariamente com os impactos de um desenvolvimento descontrolado.

Os manguezais estão presentes em 16 dos 17 estados litorâneos do Brasil (somente o Rio Grande do Sul não registra a presença de mangue) e funcionam como áreas de transição entre o rio e o mar. Eles são essenciais para a conservação da biodiversidade da fauna e da flora, atuando como berçário para diversas espécies, além de absorver carbono da atmosfera e contribuir com a qualidade da água costeira, atuando como “filtros”. Segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, produzido pelo ICMBio, as árvores presentes nos manguezais “aprisionam o sedimento entre suas raízes e troncos, processo no qual também são aprisionados poluentes, prevenindo que estes contaminem as águas costeiras adjacentes”. O documento também aponta que o ecossistema funciona como uma “cortina-de-vento”, ou seja, alivia os efeitos das tempestades nas áreas costeiras e da energia das ondas, prevenindo a erosão dessas regiões.
Além de relevantes para a conservação do Meio Ambiente, estes ecossistemas também preservam a cultura de populações costeiras, como ribeirinhos, caiçaras e pescadores. E assim como mangues, rios e mares, as lutas de diferentes comunidades caiçaras da Mata Atlântica também estão intrinsecamente conectadas. Enquanto em São Sebastião o Movimento Baía do Araçá resiste na preservação dos manguezais, em Caraguatatuba, a Associação Caiçara do Rio Juqueriquerê (ACAJU) luta para preservar o curso d’água de treze quilômetros de extensão que dá nome à associação. Há vinte e cinco anos, caiçaras da região atuam na limpeza e manutenção do Juqueriquerê, o único rio navegável da região.

No ano de 2000, o caiçara Pedro Paes começou a reparar que pelo Rio Juqueriquerê navegavam coisas que ele nunca havia visto antes: sacos de lixo. A presença de resíduos em um lugar até então preservado foi um alerta vermelho para Pedro, que decidiu tomar uma atitude. Então, junto de outros colegas e amigos caiçaras, fundou a Associação Caiçara do Rio Juqueriquerê (ACAJU) e, logo no primeiro mutirão, realizado em dois dias, foram retiradas dez toneladas de lixo do rio. “Nessa limpeza limpamos tudo. Deixamos o rio limpo. Aí depois demos uma continuidade e tiramos mais ou menos uns cento e poucos quilos. Em limpezas agora, se tiramos 50 quilos é muito. Os mutirões que a gente faz hoje é só na beira de praia, na saída do rio que ainda encosta algum saco de lixo”, explica Pedro.

Histórias como a de Humberto e Pedro são um fôlego de esperança para a Mata Atlântica mas ainda não são o suficiente para conter de uma vez por todas seu desmatamento e degradação. Dados do Atlas da Mata Atlântica indicam que entre 2023 e 2024 o desmatamento do bioma caiu em 2%, uma redução positiva porém ainda tímida. Em entrevista ao O(eco), o diretor executivo da SOS Mata Atlântica, Luís Fernando Guedes Pinto, aponta que a perda permanece alta em áreas críticas e avança sobre as florestas maduras (trechos que guardam maior biodiversidade de fauna e flora). Ainda de acordo com a reportagem do O(eco), 70% da área desmatada em 2024 se localizava em terras privadas ou em áreas sem registro fundiário formal, dados que refletem a necessidade de regularização, fiscalização e demarcação de terras.
Por esse motivo, a defesa e garantia dos territórios tradicionais pode ser também uma maneira de enfrentar o desmatamento, pois contribui com a preservação da Mata Atlântica a partir da compreensão de que essas populações vivem em harmonia com o bioma, conservando a biodiversidade e tradições culturais locais. Essa é uma das pautas que o Coletivo Caiçara de São Sebastião, Ilhabela e Caraguatatuba trabalha desde 2017. O coletivo atua pela defesa, retomada, ampliação e regularização fundiária dos territórios tradicionais caiçaras das três cidades litorâneas, além da valorização, fortalecimento, fomento e difusão da cultura e práticas tradicionais enquanto patrimônio imaterial. Para isso, seus membros se articulam e participam de espaços de tomada de decisão com o objetivo de garantir maior participação da comunidade caiçara no planejamento e implementação de políticas públicas.

Silvia Regina Paes, caiçara e membro da ACAJU, coloca também um outro lado do processo de conservação da Mata Atlântica que diz respeito à preservação por meio da manutenção da cultura popular. Esta, carrega em seus mitos e lendas mensagens de harmonia com a natureza que, ao serem transmitidas de geração em geração, perpetuam maneiras de se relacionar com o Meio Ambiente que tem o respeito e o equilíbrio como pontos centrais. “(A Mata Atlântica) sempre foi um espaço de seres encantados e mágicos que ditavam as regras de qual melhor maneira de usufruir desse território e um dos ensinamentos era não ter ganância, ter conhecimento para ir na época certa para plantar, caçar, colher e pegar apenas o necessário”, conta Silvia.
O caiçara Humberto Messias, do Movimento Araçá, vai ao encontro destas ideias e destaca a relação de interdependência entre a natureza e as populações tradicionais, um modo de vida constantemente ameaçado. “A ganância de outros vem destruindo o que temos de mais precioso, pois a mata nos ama. Ela nos ajuda absorvendo o gás carbônico, que nos mata aos poucos pela ganância de empresários que não pensam nas outras formas de vida, sejam quais forem”, conta o pescador.
A coletividade e solidariedade são algumas das bases deste modo de vida que não deixam espaço para a ganância e individualidade. E, assim como a ACAJU e o Movimento Baía do Araçá, o Coletivo Caiçara acredita que movimentos sociais liderados por populações tradicionais podem contribuir com o reconhecimento, retomada e fortalecimento deste espírito de coletividade, questão-chave da vida em comunidade. “O principal ponto é a gente conseguir se reconhecer no outro, nas outras pessoas e se apoiar, se amparar, ser acolhido e acolher também. O intento do coletivo é um pouco esse: nesse processo de se reconhecer, é a gente conseguir se juntar e fazer as coisas conjuntamente”, diz Lucas Lippi, membro do Coletivo Caiçara.
Fortalecer a solidariedade e a vida em coletivo, lutar pelo bem-viver e por uma relação de harmonia com os outros seres que habitam o planeta, defender territórios e garantir a manutenção de práticas e culturas tradicionais. É tudo isso e mais um pouco que a existência das comunidades caiçaras da Mata Atlântica representam para o planeta Terra. “Preservar, retomar e reconstituir a Mata Atlântica tem tudo a ver com a manutenção do caiçara neste território”, finaliza Silvia.